O Rio de Janeiro passa por um momento de mudanças profundas e grandes expectativas sobre os impactos que elas vão causar na cidade. O desaparecimento da Perimetral é um marco desse momento, de trânsito caótico e luz do sol onde já estávamos acostumados com a sombra permanente do viaduto. Pensei na derrubada dessa enorme via de circulação, tão útil, feia, simbólica e polêmica, para buscar alguma analogia possível com o que tenho visto acontecer na cidade, muito mais impactante do que perceber o vão aberto sobre a Rodrigues Alves e a Praça 15. Inúmeras pontes estão surgindo no Rio, conectando gente de todos os cantos, que encara o caos do tráfego e do transporte coletivo, para estar junto com o outro, fortalecendo iniciativas que, sozinhas, seriam cascalho, mas juntas formam um bloco concreto de ações criativas, que estão mudando a cara, o corpo e o espírito da cidade de forma mais radical que qualquer transformação urbanística será capaz de fazer. Falo da conexão forte que vem juntando uma galera alegre, afetuosa, talentosa, bonita, produtiva e super disposta, que tem transformado lugares e visões, a partir daquilo que criam. E eles têm criado coisa à beça! Quem não se ligou vai levar um susto quando descobrir. O Rio está transbordando.
Alguns representantes (ou agentes, talvez seja melhor essa definição) dessas iniciativas que agitam o Rio estiveram juntos na tarde de quarta, 24/09, em duas mesas de debates sob o tema geral Territórios Compartilhados, parte do segundo e último dia do 1º Seminário Internacional de Psicopolítica e Consciência, organizado pelo professor Evandro Vieira Ouriques, da UFRJ, e realizado no Infnet. E o que Ratão Diniz, fotógrafo da agência Imagens do Povo, Léo Lima, do Cafuné na Laje, Carlos Meijueiro, do Norte Comum, Victor Hugo Rodrigues, do Honório Gurgel Coletivo, fazem é um convite para todo e qualquer carioca (de nascimento ou adoção) circular pela cidade, como eles, descobrindo gente, lugares, belezas que a cidade tem, além do cartão postal que a gente conhece e, claro, admira. E tem mais: foi a atuação de cada um na cidade que fez a conexão entre eles, que passaram a admirar os trabalhos um do outro, que passaram a frequentar as iniciativas uns dos outros. Sem a pretensão de resumir o que cada um disse, segue abaixo um apanhado geral, ou melhor dizendo, parcial, do que vi e ouvi desses caras inspiradores, que estou a cidade do Rio tem me dado a alegria de conhecer e, ainda que menos do que gostaria, conviver:
“Acho que está se criando no Rio um movimento não nomeado ainda que vai gerar frutos. Querer pensar criticamente o Rio e querer aproveitar diferentes realidades. O Norte Comum tem sido um bom canal para isso. E o maior ‘perigo’ é a questão da amizade, porque quando a gente faz amizade, o elo fica difícil de quebrar. Aí o que acontece no Jacarezinho não é mais problema só do Léo, que mora lá. É meu também porque o Léo é meu amigo”, disse Meijueiro, na apresentação que fez sobre o Norte Comum, um conjunto de gente e iniciativas que tem movimentado vários bairros da Zona Norte do Rio. E se movimentar pela Zona Norte, usando transporte coletivo, não é simples, como sabe qualquer um que circule pela região por desejo ou necessidade. “A gente está discutindo mobilidade a partir da ideia do transporte público”, diz ele. “Complexos não são as favelas. Complexo é o Rio”.
Léo Lima mostrou um dos filmes que realizou pelo Cafuné na Laje, uma ideia bacana que teve, de fazer filmes com crianças e adolescentes (adultos não estão excluídos, ele frisa), criando tudo junto com eles: da ideia à edição, tudo num dia só. O resultado são curtas lindos, poéticos, engraçados, realizados por meninos e meninas de vários lugares do Rio, especialmente na Zona Norte. “Não queria fazer cinema para, mas cinema com as crianças. Os filmes que a gente produz são brinquedos com as nossas caras”, disse Léo, agora estudante de Pedagogia, que discute a formação oferecida pelas escolas, o trato com a infância, o lugar do brinquedo, do lúdico, do afeto. “Do que vale a vida se não for para viver o encontro?”, resume Léo, que quer apenas “transformar cada corpo presente em uma mídia potente”.
Ratão Diniz é autor de fotos desconcertantes da cidade vista sob novos ângulos. Formado pelo Imagens do Povo, misto de curso e agência de fotógrafos baseado na Maré, ele tem um trabalho revelador sobre o lugar em que vive, os bairros vizinhos, a Folia de Reis no Dona Marta, em Botafogo, o interior do Brasil, para onde foi num processo de reconexão com as origens do pai e da mãe, que vieram cedo para o Rio. Voltou com imagens de cores fortes, reveladoras até para quem estava habituado à paisagem. “A galera não enxerga beleza. Mas tem”, resumiu Ratão, falando tanto sobre a vila que fotografou no nordeste, como a realidade da Maré ou do Alemão, que compõem o seu trabalho.
O lugar de onde eu vim. Esse poderia ser um resumo singelo da questão que talvez seja central no Honório Gurgel Coletivo, uma ideia criada pelo Victor Hugo Rodrigues, impulsionada pelas angústias dele com o bairro em que mora e transformada num conjunto de ações que têm animado o lugar e jogado luz sobre o bairro. “No começo, eu queria transformar Honório Gurgel no Leblon. Depois, fui vendo outras formas de me reconectar com aquele lugar que eu tanto odiava”. A fala do Victor sobre a atuação do Coletivo nesse pouco mais de um ano de existência provocou a plateia sobre essa questão/problema, bastante comum a quem não nasceu na Zona Sul ou bairros mais centrais do Rio: a desconexão/negação do lugar de origem, apesar dos laços de afeto fortíssimos que nos ligam ele. Conciliar afeto e rejeição é um exercício enorme. E com uma alegria danada, o Honório Coletivo tem reconectado antigos e criado novos laços afetivos com o bairro, tornando tudo menos invisível.
Esses quatro rapazes se curtem, se frequentam, materializam essa ideia de redes que se conectam, estão abertos para a cidade – e se divertem à beça enquanto chacoalham o que a gente pensa e deseja para o Rio. São caras novas num movimento que sempre esteve ativo na cidade – o Luck GBCR, falando sobre movimento Hip Hop fez um ótimo histórico sobre criatividade-artes-mobilidade-periferia no Rio – mas que nesse momento tem como nunca a força da conexão, mais rápida e fácil, apesar dos perrengues da mobilidade que travam a cidade, isolam os bairros, dificultam a circulação e o encontro. Mas a disposição da rapaziada é enorme. E está em cena o poder da amizade. Aí, meu amigo…
ps.: agradeço ao Victor e ao Evandro que me convidaram para mediar a mesa da primeira sessão, em que participaram o fotógrafo Ratão Diniz, o pedagogo Evandro Rocha, de Amparo/RJ, o professor Claudio Rabelo, da Universidade Federal de Santa Maria, a psicoterapeuta Frinéa Souza Brandão, diretora da NeuroFocus Psicoterapias, a jornalista Paula Máiran, atual presidente do Sindicado dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro. Foi um prazer, além de um super aprendizado e uma possibilidade de novas (re)conexões.
A segunda mesa do dia teve mediação do George de Araújo, da Gerador Cultural, com Raízes Históricas Indígenas e da Rede de Cultura Digital Indígena, Luck Gbcr, da Universal Zulu Nation, Eduardo Forero, da Universidade del Magdalena, na Colombia (via hangout), Victor Hugo Rodrigues, do Honório Gurgel Coletivo, Leó Lima, do Cafuné na Lage, Carlos Meijureiro, do Norte Comum, e Afonso Celso Teixeira, do Sindicatos dos Professores do Município do Rio de Janeiro.
Para quem não conhece, a galera está aqui:
Cafuné na Laje: https://www.facebook.com/cafunenalaje
Norte Comum: https://www.facebook.com/nortecomum
Ratão Diniz: https://www.facebook.com/rataodiniz.diniz
Honório Gurgel Coletivo: https://www.facebook.com/honoriogurgelcoletivo
http://honoriogurgelcoletivo.wordpress.com/
O 1º Seminário Internacional de Psicopolítica e Consciência: para superar a discriminação foi uma realização do NETCCON em parceria com a Universidad de La Frontera-Chile, a Faculdade de Letras da Universidade do Porto e o Centro de Estudos em Tecnologias e Ciências da Comunicação-CETAC.Media, da Universidade do Porto e da Universidade de Aveiro, com o apoio do Núcleo de Marketing.ECO.UFRJ, da Agência 180o, de O Instituto e da Casa Fluminense e o patrocínio da UFRJ, do Instituto INFNET e da CONICYT-Comisión Nacional de Investigación Científica y Tecnológica-Chile.